Colégio Sagrado Coração de Jesus - A ARTE DE AGIR COM AMOR E EMOÇÃO: O CAMINHO PARA A SUPERAÇÃO

A ARTE DE AGIR COM AMOR E EMOÇÃO: O CAMINHO PARA A SUPERAÇÃO

Érico Veríssimo, em seu conhecido conto intitulado “As mãos de meu filho”, eternizou, em uma espécie de pintura verbal, a imagem dos sublimes momentos que se antecipam ao espetáculo da música, quando os sons ainda não desabrocharam por entre a escuridão da plateia: 

 

“Todos aqueles homens e mulheres ali na plateia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. 

Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros.

Beethoven.”

 

Por incontáveis vezes, esteve João Carlos Martins sob essa mesma luz de cal. Estiveram os seus dedos, em tantas ocasiões, misturados às teclas e às cordas do monstro, que ao sabor de suas vontades, este entrou em metamorfose: de indecifrável esfinge refez-se em uma bem-comportada caixa de música. Dessa caixa, porém, não reverberavam, como quis a narrativa de Veríssimo, as famosas notas de Beethoven, e sim intrincadas peças de Bach. Tendo sido considerado o mais prodigioso intérprete do compositor alemão de sua geração, João Carlos Martins tornou-se também um raro exemplo de fusão entre vida e arte, afinal sustenta uma biografia que é a mais bem-acabada expressão de uma fantasia de Bach.

 

Aos cinco anos, João precisou submeter-se a uma cirurgia para a remoção de um tumor benigno incrustrado em seu pescoço. Todavia, o procedimento contou com alguns revezes, razão pela qual uma fístula surgiu como sequela cirúrgica, de onde vazavam os alimentos sempre que a criança se alimentava. Sensibilizado, o pai do menino decidiu presenteá-lo com um instrumento, o piano. Interessantemente, do ponto de vista linguístico, a palavra “instrumento” significa, a rigor, “todo objeto que serve de ajuda para levar a efeito uma ação física qualquer”. Por certo, o piano não é um instrumento qualquer, mas, sem dúvida, levou a cabo o desígnio de objeto auxiliador para João Carlos Martins.

 

Não por acaso, o pai de João lhe sentenciou ao apresentar o instrumento pelo qual o garoto desenvolveria verdadeira fascinação: “Nós vamos perseguir o sonho de você se curar e você ficará curado”. Iniciou-se, assim a relação entre o menino e a música. Entre a vida e o sonho. Entre o piano e a fantasia. João, cujo incômodo problema da fístula foi sanado em nova cirurgia aos oito anos, debruçou-se, cada vez mais, sobre as teclas. Delas, o talento de alguém destinado à grandeza fez-se, precocemente, notar com a vitória em um concurso dedicado à interpretação de peças de Bach.

 

Aos treze anos, João Carlos Martins estabelecera-se como concertista com sólida carreira pelo Brasil. Aos dezoito anos, passou a constelar entre os nomes de lustre do cenário internacional. Pouco depois, consagrou-se em apresentações no Carnage Hall, em Nova York, sempre com lotação esgotada e multidões a se acotovelarem em disputa pelos assentos. Em tais ocasiões, peças de Bach eram as melhores vitrines para o virtuosismo do brasileiro. Tocatas, fugas e fantasias, gêneros de predileção do compositor alemão, são esquemas musicais que requerem destreza impecável do intérprete. Todavia, João não apenas os versava com facilidade, como adestrou seu corpo a um novo patamar de exigência. Tornou-se capaz de executar vinte e uma notas por segundo. 

 

Em 1965, o músico residia em Nova York, quando a Associação Portuguesa de Desportos, a Lusa, visitou a cidade por ocasião de um jogo-treino, para o qual convidou João Carlos Martins a integrar a equipe oficial. A paixão pela rubro-verde aninhara-se cedo, junto à música, no peito de João. A oportunidade de celebrá-la deu vazão ao entusiasmo. Contudo, em um desfecho inusitado, a participação do pianista na partida foi interrompida por um acidente que provocou a perfuração de seu braço à altura do cotovelo e comprometeu o pleno funcionamento do nervo ulnar – relacionado à elaboração motora das falanges. Como consequência, João Carlos Martins precisou afastar-se, temporariamente, do piano devido à atrofia de três dedos.

 

As limitações impostas por essa reviravolta eram especialmente cruéis para alguém cujas emanações da vida e do sonho vinham desses mesmos dedos, sobretudo em se tratando de um virtuose como João. As execuções de Bach feitas a vinte e uma notas por segundo, em andamentos acelerados – allegro, vivace, presto, prestissimo – evadiram-se em direção à miragem das lembranças. A situação se agravou alguns anos depois, quando o músico, que em nenhum momento desistiu da vocação e manteve-se engajado em exaustivos tratamentos, desenvolveu um quadro de lesão por esforço repetitivo (condição que, em inglês, abrevia-se por meio da sigla Dort).  Entretanto, em um exemplo incrível de superação, o pianista conseguiu voltar aos palcos após longas e atribuladas sessões de fisioterapia. Não se desapegou, aliás, da paixão por Bach. Entre 1979 e 1985, realizou várias e significativas gravações das composições do mestre barroco.  

 

Em 1995, uma nova pirueta do destino. Ao sair de um teatro na cidade de Sófia, na Bulgária, João Carlos Martins é golpeado na cabeça com uma barra de ferro em um assalto. A concussão causou uma sequela neurológica que impôs restrições ainda mais severas à mobilidade do braço direito. Em consequência disso, precisou submeter-se a intensos tratamentos e procedimentos cirúrgicos. Passou a executar peças que demandassem apenas a utilização de sua mão sã, como o álbum Só para a mão esquerda, composto por Maurice Ravel para Paul Wittgenstein, pianista austríaco que perdeu o braço direito durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto, acabou por ter a mão esquerda inviabilizada pelo acometimento de uma nova moléstia, a contratura de Dupuytren. Deste ponto em diante, inicia um longo périplo pela regência antes que pudesse voltar ao piano.

 

A transição à posição de maestro acarretou novas necessidades de adaptação. Impossibilitado de manusear as partituras em tempo hábil para reger a orquestra, João Carlos Martins passou a memorizar, nota por nota, as peças que se propunha apresentar. Ressignificou também sua fascinação por Bach por meio da criação da Bachiana Filarmônica e da Bachiana Jovem, instituições responsáveis pelo recrutamento e pela revelação de grandes talentos musicais. Surpreendentemente, em 2020, deu-se o reencontro do músico com o piano por meio de um par de luvas biônicas projetadas pelo designer industrial Ubiratã Bizarro Costa, as quais restituíram a mobilidade às mãos de João. 

 

A trajetória de João Carlos Martins é uma peça executada a vários andamentos. Primeiro, prestissimo, a vinte e uma notas por segundo. Depois, allegro ma non tropo, com uma nota a cada vinte e um segundos, mas empenho e ritmo de um apaixonado. Nunca em silêncio. E para aqueles que a qualquer momento o pensaram fora de cena, não se iludam. Como todo bom prestidigitador de Bach, João Carlos Martins é mestre da invenção e do improviso. Tem a arte sutil do ardil e da saída. Tocata e Fuga. Conhecê-lo é um privilégio que será experimentado pelos colaboradores da Rede de educação das Missionárias Servas do Espírito Santo, nesta quinta-feira, 13, às 19H no webinar Tecendo Relações. 

 

Uma imagem contendo pessoa, no interior, homem, segurando

Descrição gerada automaticamente


 

Marcus Vinícius Leles de Barcelos é graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela mesma instituição.

É professor de Literatura e de História da Arte do Colégio Sagrado Coração de Jesus. 

 
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