FILHO DA LIXEIRA

FILHO DA LIXEIRA

 O menino se recusava a voltar à escola: eles me chamaram de filho da lixeira. Não tem nada não, filho, nós somos mesmo!
 
Fortalecido, ele voltou às aulas. Descobriu que ser filho de catadora de papel não é xingamento. Falou sobre a dura jornada de trabalho de sua mãe, o cansaço, o preço do papel, o peso do carrinho a empurrar: 380 quilos! Todos os dias do mês, todos os meses do ano. Todos os anos ...da vida (vida?).
 
Para o menino sempre foi assim, antes mesmo dele nascer. Não pergunta até quando assim será. Passou de ano, assistiu a muitas reuniões sobre catadores de papel, viu nascer a cooperativa dos catadores, viveu a liderança de sua mãe. Filho da lixeira. Sou mesmo, e daí.
 
É de se pensar sobre o que escreveu Ítalo Calvino. “Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida, mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar para mais longe...”
 
Indiferentes ao peso do carinho com tração humana, passeamos nossa dignidade pela urbe como se não fôssemos nós os produtores de lixo. Como se não tivéssemos responsabilidade sobre ele. Como se outros, anônimas/os, tivessem obrigação de arrastar o fruto de nosso desperdício.
 
Entretanto, achamos que atrapalham, que comprometem a paisagem da cidade. Cada vez que se anuncia um evento, desejamos que a polícia venha prendê-los, que o prefeito os expulse, que o serviço social lhes providencie passagens para deportá-los para bem longe. Como se seres humanos não fossem.
 
É de se perguntar sobre o destino de uma cidade sem os catadores de material reciclável. Certamente morreríamos soterrados nas montanhas de lixo que produzimos e descartamos diariamente. É de se perguntar sobre o preço da limpeza pública que, no Brasil, é de responsabilidade das prefeituras.
 
Quase ninguém quer ver os lixões enfeiando a paisagem da cidade: homens, mulheres, crianças disputando com cães, gatos, porcos, urubus e moscas o produto de nosso desperdício. Sacos plásticos voando, comida deteriorada atraindo nuvens de moscas.
 
Em nome do progresso, da saúde pública, erradiquem-se os lixões. Agora a ordem é aterro sanitário, reciclagem. Aqueles que há décadas já recolhiam seletivamente os materiais recicláveis, de repente, são descartados, esquecidos como se não fossem os mais importantes agentes da coleta seletiva, os que abastecem a indústria da reciclagem, os que preservam o meio ambiente.
 
É de se perguntar sobre os motivos pelos quais temos medo de contabilizar o trabalho dessas mulheres e homens, crianças também, infelizmente. Que seria de nós se, de repente, decidissem deixar de catar os materiais recicláveis que todos os dias amontoamos em frente a nossas casas?
 
Lixões, não.
Aterros sanitários, sim, mas incorporando o insubstituível trabalho de anônimas/os catadoras/es que há décadas já fazem a coleta seletiva que só agora descobrimos.
 
Geralda, a lixeira, a mãe do menino que não queria voltar à escola, liderou a organização dos catadores de papel em Belo Horizonte. Celebrou convênio com o prefeito por meio do orçamento participativo, possibilitando que a prefeitura economizasse 1/3 do que gastava com limpeza pública. Sua cooperativa hoje congrega cerca de 300 catadores e catadoras de material reciclável. Foi premiada pela Unesco.
 
Perguntemos de que lado estamos. Dos que pensam que têm o rei na barriga, ou dos que, como a Cáritas, fez questão de comemorar seus 40 anos de atuação no Brasil no barracão da cooperativa de catadores e catadoras.
 
Filho da lixeira. Sou mesmo, com muito orgulho.
 
Iolanda Toshie Ide
 

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